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João Luiz Vieira

Cura gay? Mas a heterossexualidade é uma invenção recente

João Luiz Vieira

21/09/2017 04h00

O assunto mais comentado no terreno da sexualidade, nesta semana, foi a recente liminar concedida pelo juiz federal Waldemar Cláudio de Carvalho, do Distrito Federal, que liberou a atuação dos psicólogos para terapias de "reversão sexual". Ele julgou uma sentença que pretendia derrubar uma resolução do Conselho Federal de Psicologia (CFP), publicada em 1999. O órgão máximo da categoria disse que "psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas, nem adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados".

É preciso, porém, "negritar" alguns fatos. Tanto a heterossexualidade quanto a homossexualidade, por exemplo, são invenções historicamente recentes da nossa espécie. Acredite. Nenhuma delas era descrita na literatura médica como categorias específicas até os anos 1870, quando nossos tataravós eram jovens. Por outro lado, mesmo sem substantivo, homens e mulheres se enroscavam em indivíduos com genitálias iguais ou distintas. Nossos ancestrais, alguns verões atrás, não pensavam que pudéssemos ser diferenciados a partir do tipo de amor ou desejo sexual que sentíamos. A ênfase estava no ato, não em quem o praticava.

Depois disso, a heterossexualidade virou a mocinha da história, enquanto a homossexualidade, a vilã. Considerada uma enfermidade teve, portanto, direito a tratamento, até 17 de maio de 1990, quando a Organização Mundial da Saúde retirou a orientação sexual do Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID). A CID, distribuída em 43 diferentes línguas para mais de 115 países, tem, dentre as principais funções, monitorar a incidência e prevalência de doenças e, assim, apresentar um panorama da situação da saúde das populações do mundo inteiro.

Veja bem, isso é um dado oficial, mas cada país lida de uma maneira específica em relação a essa informação porque depende, também, de aspectos socioculturais. Sabemos, por exemplo, que homossexuais podem ser condenados à morte em cinco nações contemporâneas: Arábia Saudita, Irã, Iêmen, Mauritânia e Sudão, além de regiões da Nigéria e da Somália. No Brasil, pensava-se que isso era assunto resolvido, mas seguindo a maré ética invertida dos últimos tempos, voltou-se a abrir uma cratera no meio do oceano das certezas. Ao contrário do que argumentam pelas redes sociais, isso não se trata de censura aos psicólogos, como também não incorpora a problemática da transexualidade. Estamos falando, especificamente, de orientação sexual, não de identidade ou expressão de gênero, muito menos de perseguição a uma classe de profissionais.

É fato que na Idade Média, período histórico entre os séculos V e XV, a Igreja Católica, no auge do poder, dizia que só se poderia praticar sexo em três situações: homem com mulher, se fossem casados, e se estivessem tentando engravidar. Todo o resto, seria sodomia, e não só sexo anal, como a maioria acredita. Isso foi repassado de geração a geração. Para evitar esse "pecado", recorreu-se a vários tipos de tratamento para "reverter" a natureza, ao longo da História: terapias elétricas com eletrochoque, exposição a fotos de vômitos, "terapia da playboy" (na qual homens gays deveriam se masturbar vendo fotos de mulheres nuas) ou, ainda, a implantação de eletrodos no cérebro do homossexual masculino com o objetivo de estimulá-lo enquanto este era seduzido por uma prostituta.

Sim, isso tudo foi testado até 27 anos atrás porque se era permitido "curar" homens e mulheres que sentissem afeto ou desejo sexual por alguém do mesmo sexo. Aliás, depois disso. Sabe-se de casos de clínicas de recuperação para dependentes químicos que praticavam atos de "cura gay" aqui no Brasil na década passada. Homossexuais eram submetidos a rituais de segregação, exercícios forçados e todo tipo de humilhação para reverterem sua orientação sexual.

Importante destacar que a CID está sendo revista, e uma nova deve ser publicada até o fim de 2018. Já é fato, porém, que em sua 11ª edição se efetivará a total eliminação de todos os transtornos psicológicos e comportamentais associados ao desenvolvimento sexual e à sua orientação existentes na 10ª edição. Algumas práticas heterodoxas de sexualidade, como as parafilias e o desejo hipersexual, o nome pomposo para indivíduos "viciados em sexo", também sairão do rol de doenças na próxima edição do documento.

Por fim, e não menos importante, a autora da ação da chamada "cura gay" é a psicóloga Rozangela Alves Justino, que possui desde junho de 2016 um cargo no gabinete do deputado Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ) na Câmara dos Deputados. O parlamentar em primeiro mandato é apadrinhado pelo líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, pastor Silas Malafaia. Isso é relevante? Deixo para você opinar.

*Com a colaboração do psicólogo clínico e professor de psicologia analítica Walter Mattos e da psiquiatra e educadora sexual Alessandra Diehl.

Sobre o autor

João Luiz Vieira, 47, é jornalista, roteirista, letrista e educador sexual, ou sexólogo, como preferir. Ele tem dois livros lançados como coordenador de texto: “Sexo com Todas as Letras” (e-galáxia, fora de catálogo) e “Kama Sutra Brasileiro” (Editora Planeta, 176 páginas). É sócio proprietário do site paupraqualquerobra.com.br e tem um canal no YouTube: sexo_sem_medo.

Sobre o blog

No blog dialogo sobre tudo o que nos interessa para sermos melhores humanos: amor e sexo. Vamos encurtar o caminho entre a dúvida e a certeza, e quanto mais sabermos sobre nós, teremos, evidentemente, mais recursos e controle a respeito do que fazer em situações inéditas ou arriscadas de nossa intimidade. Trocaremos todas as interrogações por travessões. Abra seu cabeça, seu coração e... deixa pra lá.

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