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João Luiz Vieira

Ejacular em alguém é crime? As leis não acompanham a urgência da vida

João Luiz Vieira

04/09/2017 14h26

JavierPsilocybin via Visual Hunt / CC BY-NC

A polêmica da semana envolve Diego Ferreira de Novais, ajudante geral de 27 anos. O rapaz já havia sido detido na terça-feira, 29 de agosto, por ejacular em uma mulher dentro de um ônibus na região da Avenida Paulista, no centro de São Paulo, mas foi solto logo em seguida. No sábado, 2 de setembro, foi um pouco mais ousado: segurou uma mulher durante o assédio, também dentro de um coletivo, que, dessa vez, circulava na Avenida Brigadeiro Luís Antônio, que cruza a Paulista.

Além desses dois casos, o indiciado já foi acusado 15 vezes por, supostamente, ter praticado delitos sexuais. Novais afirmou, em depoimento informal a um delegado, que passou a apresentar sinais de distúrbios após um acidente sofrido em 2006, que logo depois teve o endosso de sua mãe. O Ministério Público de São Paulo (MPSP) pediu sua prisão porque no episódio do fim de semana ele usou força física para evitar que a mulher conseguisse se desvencilhar dele. Configurou-se, enfim, um estupro. Por que da outra vez não?

Na primeira situação, José Eugênio Souza Neto, juiz do Fórum da Barra Funda, Zona Oeste da capital paulistana, decidiu: "O crime de estupro tem como núcleo típico constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. Na espécie, entendo que não houve o constrangimento, tampouco violência ou grave ameaça, pois a vítima estava sentada em um banco do ônibus cheio, em cima de uma passageira, que ficou, logicamente, bastante nervosa e traumatizada". Foi o suficiente para o juiz ter recebido sentença condenatória do tribunal das redes sociais.

Há um fato positivo nesse episódio: leigos, principalmente leigas, descobriram falhas no Código Penal brasileiro. O ato de terça-feira não configurou crime, enquanto o de sábado, sim. Por causa de um detalhe: ele segurou o braço da vítima. Não há um tipo penal, ou seja, um artigo da lei que diga que ejacular no pescoço de alguém é crime. Não há. Quando isso chega a julgamento, o juiz não pode julgar sem levar em consideração o que está definido em lei. O artigo 61 da Lei de Contravenção Penal, sim, pune a "importunação ofensiva ao pudor" com multa, portanto, no episódio de terça-feira não houve qualquer maneira de manter o agressor em cárcere.

Sabe-se que, historicamente, a participação das mulheres, homossexuais, transexuais e negros é muito recente, dos anos 1960 para cá. Os limites morais, portanto, foram desenvolvidos por homens heterossexuais brancos e cisgêneros que entendiam ser correta apenas a heterossexualidade, e que a eles as mulheres, por exemplo, deveriam ser subjugadas, devendo dar-lhes filhos, satisfazer-lhes e cuidar de seus lares.

O Código Penal brasileiro vigente de 1941 a 2009 foi pensado sob esses dogmas. Há nove anos, os crimes sexuais eram definidos como "contra os costumes". Hoje, contrários à "dignidade", que é traduzida, na lei, como sinônimo de "decência, compostura, respeito". São eles: Estupro, Violação Sexual Mediante Fraude, Assédio Sexual, Estupro de Vulnerável, Corrupção de Menores, Satisfação de Lascívia Mediante Presença de Criança ou Adolescente, Favorecimento da Prostituição ou Outra Forma de Exploração Sexual de Vulnerável.

Todos esses crimes levam indivíduos à cadeia por entre dois e 15 anos, com agravantes, como gravidez ou morte. Feliz ou infelizmente, juízes seguem a lei integralmente. Eles são intérpretes de textos legais, e isso tem a ver também com o repertório cultural e linguístico de cada magistrado. Se eles não seguirem esse script, correm o risco de terem decisões reformadas em recursos. Se reincidirem no descumprimento da lei serão advertidos e até mesmo afastados.

A lei penal não é passível de qualquer interpretação. O texto é estudado de maneira estrita, e a atitude do suspeito deve ser exatamente a atitude descrita no artigo de lei. Saliente-se que as palavras colocadas em artigos legais tem o seu sentido literal, e não o uso coloquial. Constrangimento é um exemplo. Costumamos usar o substantivo com o sentido de sentirmos-nos "embaraçados, envergonhados", mas no texto legal, é "obrigar, coagir, forçar a realizar alguma coisa", portanto, não se pode estender a interpretação do texto legal como uma violência moral. Não é fácil fazer parte da minoria historicamente subjugada, ou seja, todos os que não são homens brancos, heterossexuais e cisgêneros.

Nós, humanos, somos julgados por outras pessoas, e por nós mesmos, em vários momentos e situações, mas talvez poucas coisas na vida incitem julgamentos tão frequentes e tão fortes quanto a sexualidade. Julgamentos estão presentes na nossa forma de vestir, na maneira como e com quem fazemos sexo, além de darem pitaco em nossas fantasias, posições e desejos. Até a frequência de nossos atos sexuais, para mais ou para menos, é julgada, principalmente por nós mesmos. Por isso, colocamos algumas pessoas (médicos e juízes, principalmente) no lugar dos "deuses" para "terceirizar" o julgamento.

Estranhamos muitos artigos da legislação, e foi através da mobilização popular que alguns deles foram criados e modificados, como a Lei Maria da Penha, só para ficar em um exemplo. Criada em 7 de agosto de 2006, é um dispositivo legal brasileiro que visa aumentar o rigor das punições sobre crimes domésticos. A trajetória é longa, precisamos pressionar os deputados e senadores, mas o fim da estrada é só parte do caminho.

*Com a colaboração da advogada Fernanda Prado Sampaio Calhado e do psicólogo clínico e professor de psicologia analítica Walter Mattos.

Sobre o autor

João Luiz Vieira, 47, é jornalista, roteirista, letrista e educador sexual, ou sexólogo, como preferir. Ele tem dois livros lançados como coordenador de texto: “Sexo com Todas as Letras” (e-galáxia, fora de catálogo) e “Kama Sutra Brasileiro” (Editora Planeta, 176 páginas). É sócio proprietário do site paupraqualquerobra.com.br e tem um canal no YouTube: sexo_sem_medo.

Sobre o blog

No blog dialogo sobre tudo o que nos interessa para sermos melhores humanos: amor e sexo. Vamos encurtar o caminho entre a dúvida e a certeza, e quanto mais sabermos sobre nós, teremos, evidentemente, mais recursos e controle a respeito do que fazer em situações inéditas ou arriscadas de nossa intimidade. Trocaremos todas as interrogações por travessões. Abra seu cabeça, seu coração e... deixa pra lá.

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