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João Luiz Vieira

Por que entramos em pânico com a nudez e estamos perseguindo artistas?

João Luiz Vieira

02/10/2017 04h00

Reprodução Internet

Há nove anos, o artista plástico Maurício Ianês apresentou um trabalho chamado "A Bondade de Estranhos" na 28ª Bienal de Artes de São Paulo. Ele perambulou pelo prédio da mostra completamente nu, por 12 dias, enquanto propunha entender quais reações seu corpo desnudo incitava: de estranhamento a oferta de roupas e alimentos, muitos deles entregues por crianças da rede pública e particular de ensino. Não filmaram crianças tocando em seu corpo, nem acusaram a Bienal nem o performer de pedofilia.

Citar esse episódio, e não os muitos do passado, é porque não tem uma década sequer e, nesses poucos meses que nos separam daquele ano, somos testemunhas de um movimento que tenta interditar o livre arbítrio, talvez um de nossos maiores instrumentos de conquista da autoconsciência, tanto de artistas quanto do público que decide compartilhar com eles alguma expressão artística. De-ci-de.

Em julho deste 2017, o artista paranaense Maikon Kempinski, conhecido como Maikon K, foi preso pela Polícia Militar do Distrito Federal por estar praticando "atentado ao pudor". Ele executava a performance "DNA de DAN", em que ficava completamente nu, como Ianês em 2008, no Museu Nacional da República.

No mês passado, um juiz de Jundiaí (SP) decidiu interromper a exibição de de "O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu", que já estava em cartaz no Sesc daquela cidade. Motivo: uma atriz travesti, Renata Carvalho, interpretava Jesus num monólogo, escrito pela inglesa Jo Clifford, que, veja você, recria a história de Jesus como transexual. Poucos dias depois, a exposição "Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira", no centro cultural de uma agência do banco Santander em Porto Alegre (RS), também foi cancelada. Alegaram "vilipêndio a valores cristãos", "estímulo à pedofilia e à zoofilia".

Na semana passada, ainda em setembro, uma leitura interpretativa da obra "Bicho", de Lygia Clark (1920-1988), historicamente reconhecida por proposições artísticas interativas, desta vez no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), de São Paulo, provocou reações virulentas contra a performance do bailarino e coreógrafo Wagner Schwartz (foto). Acusaram o museu de estímulo à pedofilia.

A apresentação foi realizada na abertura da Mostra Panorama da Arte Brasileira, em apresentação única, na terça, 26. A sala estava devidamente sinalizada sobre o teor da apresentação, incluindo a nudez artística, mas tanto o artista quanto representantes da instituição foram agredidos verbal e fisicamente por um grupo de manifestantes nesse fim de semana.

Não vou me ater aos pormenores do noticiário, mas ao fato da reiteração dessas celeumas. Volto a François Marie Arouet, que se batizou artisticamente de Voltaire na Paris do século 17: "O povo não lê nada, trabalha seis dias por semana e no sétimo vai ao prostíbulo". O dito seria uma resposta a quem o acusava de subversivo. Preliminarmente, é preciso reforçar o que pensava óbvio, a partir do acontecimento, ainda em ebulição, nas redes sociais.

O corpo nu em si não é (ou não deveria ser) visto como sexual. A sexualidade responde a pulsões e um indivíduo sem roupa necessariamente não provoca (ou não deveria provocar) isso. Isso, do ponto de vista, racional e lógico, mas há muitos tons de cinza nesta afirmação porque mexe com repertórios individuais de aprendizados e/ou vivências.

Há muito pouco tempo histórico, um tornozelo desnudo de uma mulher era um escândalo, mas por que isso? Conceitos morais e éticos são temporais e culturais, e são comumente revistos, nem sempre para avanços, mas, sim, propondo recuos sobre o estabelecido. É o que parece ser o movimento atual e, praxe, artistas são os primeiros a sofrerem tentativas de interdição.

A arte nasceu para espelhar nossa espécie e, muitas vezes, revisa paradigmas. Ela não é religião nem escola. Não precisa transcender, aliviar ou confortar. Não precisa imobilizar, tensionar ou confrontar. Não precisa nada. Arte, inclusive a erótica, não tem sequer moral. Arte não deveria ter compromisso com dogmas ou éticas sexuais.

Em momentos mais sombrios do que luminosos, como esse pedaço da jornada, o indivíduo sente que a comunidade não o nutre como antes, e, assim, a tendência é demarcar território para subsistir e criar impedimentos. Esse movimento é pendular, portanto, temporário. A reação contemporânea a essas propostas artísticas poderia ser batizada, por suas características, de "Levante das Sombras".

Vou repetir as perguntas quando do cancelamento da exposição em Porto Alegre. Quais os limites da expressão artística e, se há, quem os delimita? Uma exposição é espaço público ou privado? Exibição de imagens artísticas que envolvem sexo é apologia? Um indivíduo com uma câmera de celular numa exposição, constrangendo o público, comete infração? Essas perguntas estão sendo sempre feitas e a respostas dependem muito do repertório de cada um.

A sociedade está tão destemperada e inflamada que nem se permite ao básico: entender os contextos. Compra versões e parte para a luta armada a partir de referências que foram espalhadas como se pólvora. Esse tipo de problematização, claro, não é nova, mas eu só sei de uma coisa: era muito mais divertido ser jovem nos anos 1980, apesar da luta por democracia, da guerra fria e da aids.

Quem será o próximo a ser queimado em praça pública, talvez já nesta semana, simplesmente porque quis fazer uso de seu livre arbítrio? O medo maior, porém, será o de caminharmos em direção à distopia, quando se vive em condições de extrema opressão. Isso lhe interessa?

Sobre o autor

João Luiz Vieira, 47, é jornalista, roteirista, letrista e educador sexual, ou sexólogo, como preferir. Ele tem dois livros lançados como coordenador de texto: “Sexo com Todas as Letras” (e-galáxia, fora de catálogo) e “Kama Sutra Brasileiro” (Editora Planeta, 176 páginas). É sócio proprietário do site paupraqualquerobra.com.br e tem um canal no YouTube: sexo_sem_medo.

Sobre o blog

No blog dialogo sobre tudo o que nos interessa para sermos melhores humanos: amor e sexo. Vamos encurtar o caminho entre a dúvida e a certeza, e quanto mais sabermos sobre nós, teremos, evidentemente, mais recursos e controle a respeito do que fazer em situações inéditas ou arriscadas de nossa intimidade. Trocaremos todas as interrogações por travessões. Abra seu cabeça, seu coração e... deixa pra lá.

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