Rogéria usou humor e amor para desarmar adversários
Rogéria, que morreu aos 74 anos nesta segunda, 4, por causa de um choque séptico, foi tão fundamental para a história da sexualidade que ela ficou conhecida por um único nome. Gente que derruba paradigmas na espécie não precisa de nome e sobrenome para significar: Sócrates, Aristóteles, Freud, Jung, Mozart, Elvis, Madonna, Pelé e Gisele, só para ficar em dez exemplos.
Por que ela foi relevante para a sexualidade, e não apenas para a homossexualidade ou transexualidade? Porque Rogéria, transgênero e homossexual, borrou os limites das nomenclaturas restritivas, os lugares marcados entre o quartinho dos fundos e a sala de estar. Ela se autointitulava a "travesti da família brasileira", e carregava isso como cetro e coroa: nenhuma outra travesti havia chegado tão longe no Brasil.
Talvez até hoje não haja essa personagem que conseguiu nublar preconceitos ligados às identidades, expressões de gênero e orientações sexuais consolidados por séculos, boa parte influenciados pelos dogmas religiosos. Um outro paradoxo ligado à Rogéria: ela era cristã.
Rogéria comeu pelas beiradas e, em certo aspecto, era até conservadora. Uma senhora com pênis e seios que fazia piada dessa situação e do próprio nome de batismo, que era em si uma anedota: Astolfo Barroso Pinto. Rogéria começou seu plano de cativar a audiência quando foi trabalhar como Rogério, maquiador, na extinta TV Rio, em 1964. Foi lá onde desarmou corações duros e conquistou divas consagradas como Emilinha Borba, Marlene, Dalva de Oliveira, Elizeth Cardoso, Elis Regina, Bibi Ferreira e Fernanda Montenegro.
Rogéria focou na carreira e manteve sua vida sexual trancada em um relicário simbólico. Assim, ganhou fãs e detratores. Heterossexuais a achavam, em certo aspecto, inofensiva. Porque não se expunha em cenas eróticas com homens, não citava romances, não fazia escândalos, e no fim da vida era uma "vovó". Para conservadores, o indivíduo pode ser até ser travesti ou gay, desde que não faça "cena" em público.
A ala mais aguerrida da militância homossexual, por mais ingrato ou cruel que possa parecer, não a admirava exatamente por isso. Porque "fazia o jogo", não provocava rupturas. "Consegui fazer meu nome, ser respeitada, ser chamada de senhora", dizia. O heroísmo nem sempre significa empunhar armas ou provocar o desconforto.
De novo, a velha discussão: como subtrair a força de um adversário? Batendo de frente, chamando para a briga, ou desarmando o ódio? Que opção restaria para uma travesti famosa em plena ditadura militar? A prisão. Ao que se saiba, lugar para onde ela nunca foi arrastada. Correria esse risco, teria de ser presa?
Indiscutivelmente inteligente e afetuosa, Rogéria baixou as armas inimigas com amor, por mais piegas que isso possa parecer. Talvez por isso sua morte causou tanta emoção nas redes sociais: o que ela entregava virou artigo raro em uma contemporaneidade cada vez mais bélica.
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