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João Luiz Vieira

Ivana revelará que é trans na novela, mas todos estamos em transição

João Luiz Vieira

29/08/2017 17h19

TV Globo/Divulgação

Glória Perez, que assina, sozinha, "A Força do Querer", deve estar escrevendo sua novela em pé, como de costume, mas flutuando no chão. A trama das 21h é a novela de maior audiência da emissora mais assistida do Brasil, a TV Globo, desde 2015. Hoje deve subir ainda mais seus índices. No capítulo desta noite, 29 de agosto, a personagem Ivana (Carol Duarte) jogará uma "bomba" na sala de estar de sua família: deixará claro que é transexual e que não é, nunca foi, e não pretende continuar sendo, uma moça.

Glória havia pensado em tratar de transexualidade desde os 1980, após ler o histórico livro em que João W. Nery conta, em detalhes, sua transição de gênero: "Erro de Pessoa – Joana ou João?" (Ed. Record). Àqueles idos, pouco se falava sobre o assunto, embora não seja exatamente uma novidade como fenômeno, seja no meio científico ou em alguns lares, mundo afora. Talvez porque o assunto não fosse palatável para a massa à época, executivos daquele canal decidiram abortar a temática. Parece que a situação mudou.

Na trama de "A Força do Querer", há cinco mulheres protagonistas, e um dos núcleos mais animados do momento é o centralizado em Joyce (Maria Fernanda Cândido). Ivana, sua caçula, é distônica entre o que é e o que parece ser, e começou a fazer transição de gênero, do feminino para o masculino, utilizando-se de testosterona. A audiência ficou perturbada, assim como a personagem, e agora trará sua família para dentro do tufão.

O assunto tem muitas nuances. Para se ter uma ideia, dos 31 gêneros existentes hoje, há 18 transgêneros e, por enquanto, Ivana poderia ser identificada (se ela quisesse) como non-op, ou seja, indivíduos trans que não realizaram nenhum procedimento cirúrgico. Ainda, ao menos. Se realizar, ela mudaria de gênero, para, por exemplo, FTM (female to male). Repito: se ela, assim, permitisse.

É preciso informação, cautela e paciência para entender esse momento peculiar da espécie, em que o indivíduo se posiciona diante do grupo, ou seja, a opinião individual se sobressai sobre o alheio. Isso é recorrente em momentos de falências utópicas, quando, inconscientemente, percebe-se que a comunidade não garante a sobrevivência de um. Vivemos essa eterna tensão entre o eu e o eles. O processo de entendimento, aceitação e, posterior, integração social é lento, doloroso e complexo para o transexual e quase todos que o circundam.

Lembro de um amigo que me disse uma vez: "Não estou entendendo nada, e talvez não queira mesmo entender. Sou da época em que a gente só tinha dois modelos de discussão sobre sexualidade: se o indivíduo era homem ou viado, mulher ou sapatão". Podemos até decidir o que quisermos entender, mas não é porque não queiramos saber sobre as recentes conquistas de gênero que elas não existam. Mais que isso. Que homens e mulheres não possam ajustar seus corpos, condutas e políticas de acordo com suas necessidades precípuas. Intrigante é que mesmo em algumas religiões firmadas no livre arbítrio há discursos contrários a modificações corpóreas porque Deus "assim quis".

Saiba que há registros de homens vivendo como mulheres ou mulheres vivendo como homens antes do Império Romano. Nero (37 d.C. 68 d.C.) chutou sua mulher grávida, Poppaea, até a morte, arrependeu-se e, tomado de remorsos, buscou alguém parecido com ela. Encontrou em um escravo, Sporus, essa semelhança, e ordenou a seus cirurgiões que o transformassem em mulher. Ou ele aceitava ou adivinha? Há, porém, controvérsias que apimentam conceitos a respeito do assunto, que divide opiniões entre médicos, sociólogos e até mesmo nos grupos que sofrem na pele o problema.

A principal delas, no momento, é a chamada "Teoria Queer", surgida nos anos 1980. Ela defende a controvertida ideia que a orientação sexual e a identidade sexual ou de gênero são resultado de uma construção social. Por esse prisma, não existem papéis sexuais essencial ou biologicamente inscritos na natureza humana, como defendem biomédicos. O que existe, segundo a teoria, são formas socialmente variáveis de desempenhar um ou vários papéis sexuais. O assunto é confuso até mesmo entre transexuais. Vamos ver como o capítulo de hoje repercute. Se valer como dica: ouça, leia, observe e mergulhe para dentro antes de opinar sobre o outro. Estamos todos em transição ética, não só Ivana ou sua família.

Sobre o autor

João Luiz Vieira, 47, é jornalista, roteirista, letrista e educador sexual, ou sexólogo, como preferir. Ele tem dois livros lançados como coordenador de texto: “Sexo com Todas as Letras” (e-galáxia, fora de catálogo) e “Kama Sutra Brasileiro” (Editora Planeta, 176 páginas). É sócio proprietário do site paupraqualquerobra.com.br e tem um canal no YouTube: sexo_sem_medo.

Sobre o blog

No blog dialogo sobre tudo o que nos interessa para sermos melhores humanos: amor e sexo. Vamos encurtar o caminho entre a dúvida e a certeza, e quanto mais sabermos sobre nós, teremos, evidentemente, mais recursos e controle a respeito do que fazer em situações inéditas ou arriscadas de nossa intimidade. Trocaremos todas as interrogações por travessões. Abra seu cabeça, seu coração e... deixa pra lá.

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