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João Luiz Vieira

Concordar ou não com Liniker sobre assédio dependerá do ano que você nasceu

João Luiz Vieira

24/08/2017 20h14

Festival Bananada 2017 via Visualhunt / CC BY-SA

A cantora Liniker, nascida em Araraquara (SP) há 22 anos, afirmou ter sido vítima de assédio durante um show na semana passada, em Santa Maria (RS). Ela usou uma rede social para desabafar. Segundo a artista, indivíduos apertaram sua bunda quando ela desceu para cantar "Prendedor de Varal" no meio da pista. A cantora se declarou "triste" e "envergonhada". Frase dela: "alvoroçaram a minha bunda e foi horrível". Parte do ressentimento se tornou público. Lineker disse que ficou "muito brava, fiquei puta, fiquei com raiva por mais uma vez objetificarem meu corpo preto, objetificarem a minha bunda". A cantora enfatizou que não quer mais "ser objetificada por ninguém".

O assunto inclui interessantes iscas linguísticas e éticas contemporâneas. A começar das escolhas de verbos declinados. "Alvoroçar" é a mesma coisa que amotinar, sublevar, inquietar, alegrar, entusiasmar, sobressaltar. Pode-se até gostar que alguém alvoroce uma bunda, mas não sem permissão. "Objetificar" significa que, naquele momento, Liniker não era ser humano livre para fazer escolhas: era objeto de luxúria, desprovida de consideração e afeto, disponível para ser usada. Por fim, "corpo preto" traduz uma realidade que é íntima de nossa cultura, o lugar do negro na nossa sociedade. Um "não ser" (digno de respeito, consideração, vontade, direitos).

Indivíduos de gerações e ativismos distintos publicaram opiniões equidistantes sobre o posicionamento da Liniker. A propósito: ao citar a artista, não trocarei o artigo feminino "a" para "x" ou "@", como pede o politicamente correto, porque haveria prejuízo para deficientes visuais, que utilizam softwares de leitura de tela e teriam dificuldade de compreender tais símbolos. Uma fissura, diante desse fato, se fez nítida. A maioria dos nascidos a partir da metade dos anos 1980 concordaram com ela, mas os que estão na savana há mais tempo, não. Ou a apoiaram parcialmente. É preciso entender a força de uma ação, e de uma reação, no caso oferecer o corpo numa pista excitada, e, por outro lado, tocar o corpo do outro sem consentimento.

Em ambos os casos há poder, mas num deles há sedução, enquanto no outro só há coerção. O relevante nesse diálogo é que a civilização, necessária para conviver e cooperar em grupo, envolve a capacidade de fazer escolhas e se responsabilizar por elas, assim como respeitar decisões alheias. Se um artista desce a um palco, corre, sim, riscos de ter seu corpo objetificado, independente de ter um "corpo preto", se é empoderado e tem legitimidade em seu "lugar de fala". Música, inclusive, também é expressão de sexualidade humana. Contextos em que a música é central são tipicamente lugares de conquista, e a dança é um ritual de sedução, poucos duvidam disso.

"…A gente fica mordido, não fica? Dente, lábio, teu jeito de olhar. Me lembro do beijo em teu pescoço. Do meu toque grosso, com medo de te transpassar. Deixa eu bagunçar você, deixa eu bagunçar você". Parte das frases cantadas por Liniker em "Zero" evidenciam que ela sabe que música também evoca sexo, mas, provavelmente, desconhece que está tocando em contextos e lugares onde a civilização está ameaçada. A cantora conclama todos os deuses da sensualidade, tanto pelo teor de suas canções quanto pela sua figura, que transita entre o masculino e o feminino, pelas suas roupas e sedução da voz.

Ney Matogrosso, 76 anos, para ficar em um exemplo de personagem ainda vivo, sempre provoca a plateia em seus shows, e, provavelmente, ele tem ideia do que pretende com isso, da tensão que promove e dos riscos que corre. Ney já incorporava o prefixo "trans" com vigor no início dos anos 1970, quando se posicionar e, pior, se locomover nos compartimentos sexuais era quase uma afronta aos militares que mandavam nos brasileiros. A saber, trans é prefixo que significa, dentre outras coisas, ir além, ou seja, se se vai além o indivíduo terá surpresas: deserto ou oceano, empatia ou antipatia, amor ou ódio.

A cantora Lineker se equivocou? A sua opinião terá muito a ver com o ano em que nasceu, onde cresceu, o que testemunhou, enfim, que repertório de vida carrega.  Será que a onda bélica dos ativistas contemporâneos tem produzido efeitos contraproducentes? Em vez de provocar a empatia do ignorante a esse ou aquele assunto, pode levar ao confronto e ao sectarismo, o "nós contra eles" quando, efetivamente, somos "todos"? Entende-se que Liniker ficou chateada, mas ela fez uma escolha, e diante da crise ética na qual estamos mergulhados, de nossa cada vez mais manifesta incapacidade de construir civilização, ninguém se surpreende.

*Colaboração do psicólogo clínico e professor de psicologia analítica Walter Mattos.

Sobre o autor

João Luiz Vieira, 47, é jornalista, roteirista, letrista e educador sexual, ou sexólogo, como preferir. Ele tem dois livros lançados como coordenador de texto: “Sexo com Todas as Letras” (e-galáxia, fora de catálogo) e “Kama Sutra Brasileiro” (Editora Planeta, 176 páginas). É sócio proprietário do site paupraqualquerobra.com.br e tem um canal no YouTube: sexo_sem_medo.

Sobre o blog

No blog dialogo sobre tudo o que nos interessa para sermos melhores humanos: amor e sexo. Vamos encurtar o caminho entre a dúvida e a certeza, e quanto mais sabermos sobre nós, teremos, evidentemente, mais recursos e controle a respeito do que fazer em situações inéditas ou arriscadas de nossa intimidade. Trocaremos todas as interrogações por travessões. Abra seu cabeça, seu coração e... deixa pra lá.

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